16 de dezembro de 2016

A PUBLICIDADE DO PROCESSO PENAL NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO


Numa sociedade informatizada, o processo deveria manter e primar pelo seu caráter público? A publicidade dos atos processuais é uma medida adequada aos fins de proteção do cidadão ante os desmandos do Estado, logo não pode ser afastada?

As questões com as quais iniciamos a coluna desta semana, longe de serem simples de se responder, servem à reflexão: até que ponto, numa sociedade em que toda e qualquer informação possui alto potencial de difusão, pode-se advogar pela observância da publicidade dos atos processuais de forma absoluta?
O processo penal, como se sabe, é o caminho único e necessário pelo qual deve passar o direito penal para que seja aplicado a alguém. Nenhuma pena, nenhuma forma de sanção decorrem, pura e simplesmente, da previsão do direito penal. Sem processo, o direito penal é “castrado” e nada pode fazer – na expressão feliz de Aury Lopes Junior.
Portanto, é evidente que o processo penal, dentro do âmbito social, mostra-se extremamente relevante, pois é justamente o mecanismo pelo qual se vale o Estado para aplicação de uma violência a um dos seus cidadãos. E não se assustem, é isso mesmo, o direito penal não deixa de ser violência e, justo por isso, não pode ser aplicado sem a observância estrita das “regras do jogo” para que seja legítimo (LOPES JUNIOR, 2013, p. 53-62).
Assim, o processo penal, como promotor da violência estatal, merece muitos de nossos olhares, sob pena de se permitir uma aplicação “subterrânea” da norma criminalizadora, criando-se um “direito penal de porão” – pelo qual o Estado “fomenta” a prática de atos ilícitos e atentatórios à própria dignidade humana em prol de seus interesses mesquinhos em detrimento de determinados “alvos” (ZAFFARONI; BATISTA; SLOKAR; ALAGIA, 2003, p. 70)
A publicidade dos atos processuais, em virtude disso, emerge dentro do panorama constitucional como garantia fundamental do cidadão e da própria sociedade, já que permite a qualquer um do povo, de quem emana todo poder, acompanhar a atuação de suas autoridades, apontando suas falhas, excessos e destemperos.
É uma segurança do indivíduo, uma forma de dizer ao Estado “cuidado com o que está fazendo, tem gente olhando, inclusive eu”. Seria uma forma de bradar os erros grosseiros do Estado-Juiz, impedindo-os de serem praticados ou clamando pela sua imediata correção, se ainda for possível.
Mas e quando os direitos à informação e à publicidade dos atos tornam-se armas de disseminação do ódio popular, estigmatizando o processado e levando-o a uma espécie de “morte social”?
Esse talvez seja um dos grandes dilemas a ser enfrentado pelo processo penal atual, pois numa sociedade altamente informatizada, na qual qualquer fato é promovido instantaneamente, cabe se perguntar se a informação em demasia, ao invés de proteger, não passaria a prejudicar o processado, já abatido pelo intenso processo de estigmatização causado pela mera denúncia criminal. Como dizia CARNELUTTI (2009, p. 64-65):
“[…] o descobrimento do delito, de dolorosa necessidade social, tem-se convertido em uma espécie de esporte; as pessoas se apaixonam do mesmo modo que pela busca do tesouro; editores profissionais, editores diletantes, editores improvisados, não colaboram tanto quanto fazem concorrência aos oficiais de polícia ou aos juízes instrutores; e, o que é pior, fazem seus trabalhos”.
Assim, não se pode perder de vista que o processo penal assumiu a pauta midiática e passou a ser mais um produto de venda ao grande público. Observar o caminhar da inquisa ou do procedimento instrutório deixaram de ser apenas um compromisso assumido em prol da liberdade, como passaram a ser vistos como divertimento público, um verdadeiro espetáculo.
A possibilidade do cometimento de um crime e a expectativa da aplicação da pena passaram a ser entretenimento público elevando os processos criminais ao patamar de “máquina de moer reputações”, sem que para tanto se precise chegar a uma condenação definitiva.
A publicidade, ao contrário do fundamento que a originou, atua como aliada do poder de acusar que agora abre mão da punição estatal, para possibilitar a “punição social”. Não bastasse isso, cabe observar que a informação processual com frequência tem sido manejada como forma de jogar a “torcida” para dentro dos autos, levando aos olhos de todos que determinado ator processual, especialmente o juiz, não agiu conforme a maioria popular ensandecida espera, sendo, pois, inimigo público e do “cidadão de bem”, pois “joga” contra o interesse da massa (erroneamente chamado de “interesse público”) em prol de um tal de “direitos humanos” ou umas tais de “garantias” (ROSA; JOBIM, 2015, p. 216-217).
A fórmula deu tão certo que, hodiernamente, determinados órgãos, com destaque ao Ministério Público e à Polícia, utilizam a informação, cujo teor em regra deve ser público, como forma de angariar e receber o respaldo popular e, assim, constranger o juízo criminal a aplicar uma condenação consistente em prisão ou qualquer outra sanção de interesse à acusação.
É absolutamente corriqueiro nos dias atuais que os próprios promotores de justiça ou procuradores da República promovam “coletivas” de imprensa, divulgando elementos processuais vagos com o fim de “vender” sua tese acusatória ao grande público – a quem cabe tomar as próprias conclusões, quase sempre voltadas à “condenação”. Não é raro ver que as informações de inúmeros processos são primeiro divulgadas à imprensa e, bem depois, à defesa.
Além disso, a informação passa a ser moeda de troca: “faça o que lhe peço e não mostro para ninguém o que tenho”.
Há, em verdade, uma inversão da finalidade da publicidade processual, deixando de servir ao cidadão e passando a ser uma “carta” na manga dos órgãos do Estado. O vazamento seletivo da informação pode se tornar uma nova forma de “tortura”, pois pressiona o processado a colaborar com a acusação, sob pena de se ver envolvido numa grande campanha de reprovação promovida pela divulgação dos atos processuais de maneira distorcida – inclusive por meio de slides em coletivas de imprensa.
Com isso, novamente questiona-se se o processo penal deve resguardar o sigilo de todos os processos e atos correspondentes, mantendo-os “fechados”. De nossa parte, entendemos que não.
Mas também entendemos que não se pode permitir que a informação processual seja lançada como forma de se atentar contra a honra de um processado, pois aí se estaria diante de uma flagrante inversão de garantias fundamentais como mecanismo de estigmatização, tudo com o fim de tornar o acusado, já enfraquecido pelo simples fato de ser processado, em novo vilão para o deleite dos espectadores que assistem à trama. É preciso que se racionalize a publicidade processual às peculiaridades da sociedade de informação.
Não se pode mais admitir que uma revista tenha acesso aos autos antes mesmo que o processado. Não se pode mais admitir que o “interesse público”, sob sua égide mais genérica, permita a propagação de informações “delicadas e dúbias” colhidas durante a investigação ou processo com finalidades de construção de identidades sociais negativas dos acusados.
Um basta ao espetáculo macabro das acusações midiáticas.

REFERÊNCIAS
CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. São Paulo: Pillares, 2009.
LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 10. Ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
ROSA, Alexandre Morais; AMARAL, Augusto Jobim. Cultura da punição: a ostentação do horror. 2. Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.
ZAFFARONI, Eugénio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro: teoria geral do delito. 4. Ed. Rio de Janeiro, Revan, 2011. V. I.
Fonte: Canal Ciências Criminais  /  http://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br
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