Desde a promulgação da Constituição de 1988 discute-se acerca da possibilidade de o Ministério Público manifestar-se de forma contrária ao interesse do incapaz.
O novo Código de Processo Civil, assim como o pretérito, prevê que o Parquet deve intervir como fiscal da ordem jurídica em processos que envolvam o interesse de incapaz (art. 178, II).
Conforme dispõe o art. 127, § 2º, da Constituição Federal, o Ministério Público possui autonomia funcional. Ademais, o preceito contido no artigo 178 do Código de Processo Civildispõe que o Ministério Público age para tutelar a "ordem jurídica", e não para defender o incapaz.
É importante frisar que a atuação ministerial, neste caso, é absolutamente distinta na constante em processos penais: nesta, está-se diante de uma celeuma que envolve dois direitos indisponíveis (liberdade x segurança pública); no âmbito civil, há uma única questão (em regra) de maior relevância que gera o dever de intervenção.
Acerca disso, o Superior Tribunal de Justiça asseverou:
RESOLUÇÃO DE CONTRATO. INTERESSES DE INCAPAZES. PARECER DO REPRESENTANTE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PELA IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO. POSSIBILIDADE. ART. 82, I, DO CPC. – Não está obrigado o representante do Ministério Público a manifestar-se, sempre, em favor do litigante incapaz. Estando convencido de que a postulação do menor não apresenta nenhum fomento de juridicidade, é-lhe possível opinar pela sua improcedência. Recurso especial não conhecido.(REsp 135.744/SP, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, QUARTA TURMA, julgado em 24/06/2003, DJ 22/09/2003, p. 327)
Não se pode crer que a função do Ministério Público em processos civis que envolvam incapaz seja simplesmente zelar pela ordem jurídica.
É a presença do incapaz no feito que ensejou a atuação ministerial; conferiu-se ao Parquet o dever de fiscalizar a observância do rito processual e resguardar a ordem jurídica, de forma a deixar a salvo os interesses daquele que é presumidamente hipossuficiente.
O dever de zelar pela ordem jurídica como um todo criaria para o Ministério Público o ônus de intervir em todos os processos. É claro que não é essa a ideia imposta pela aludida intervenção obrigatória.
O que gera a intervenção do Ministério Público não é simplesmente um interesse público. Afinal, sempre que houvesse uma ilegalidade, uma controvérsia, enfim, deveria oParquet agir. Nesses casos, contudo, o interesse público é apenas indireto, não atinge tamanha relevância ao ponto de exigir maior fiscalização.
Portanto, a questão chave para a manifestação do Ministério Público em processos que envolvam interesses de incapazes é, sem dúvidas, evitar que este seja prejudicado pela inobservância da ordem jurídica.
Para José Roberto dos Santos Bedaque:
Afirma-se que, se o órgão ministerial concluir pela inexistência de qualquer direito indisponível do incapaz, não há o que defender, devendo ele, nesse caso, postular pela correta atuação da lei, ainda que em benefício da parte capaz. Tal posição, todavia, não se mostra correta. Toda demanda tem por fundamento a existência ou inexistência de um direito subjetivo, deduzido pelo autor na inicial. (...) O Curador de incapazes deve, levando em consideração estas premissas, desenvolver sua atividade processual de forma a ajudar o incapaz. Ou seja, o Curador deve dispender todos os esforços para que os fatos alegados pelo incapaz fiquem demonstrados e, quanto à adequação dos fatos à norma, desenvolver raciocínio jurídico sempre favorável ao incapaz.
Ainda, segundo ele:
Os fatos descritos pelo incapaz não lhe assegurem qualquer situação de vantagem prevista em lei, o que implica a inexistência de direito subjetivo. Não se pode exigir do Curador, nesses casos extremos, a defesa intransigente dos interesses do incapaz, obrigando-o a violentar sua própria consciência. (...) Por outro lado, o que não se admite é a possibilidade de o Curador de Incapazes tecer argumentos em favor da parte capaz, procurar provas para favorecê-la, ou, até, desenvolver raciocínio jurídico no sentido de que os fatos efetivamente demonstrados se subsumem a uma norma que a favorece. Nessas hipóteses, esgotou ele os meios que dispunha para auxiliar o incapaz. Deve, pura e simplesmente, declarar nada mais ter a deduzir em favor da parte a quem lhe compete assistir.
Acerca da posição de Cândido Dinamarco, Hugo Nigro Mazzilli afirma:
Assim, não se trata de uma defesa abstrata da ordem jurídica, nem da defesa de qualquer lei: o que está em jogo é a indisponibilidade de um direito que pode estar sendo violado. Então, o Ministério Público está lá para defender o incapaz, e nisso Dinamarco está coberto de razão.
O Superior Tribunal de Justiça, aliás, parafraseando Hugo Nigro Mazilli, assevera:
Evidentemente, não tem legítimo interesse o Ministério Público em argüir prescrição contra o incapaz, ou em recorrer contra os interesses deste; aqui não se trata da liberdade de convicção ou de opinião - por nós aceita - mas sim dos limites ao seu poder de agir, por falta de interesse. (...) Essa vedação ocorre, a nosso ver, não porque não tenha liberdade de opinião, mas sim porque nesse caso estaria suprindo deficiências no zelo de interesses disponíveis da parte contrária, para o que não está legitimado (cf. Justitia 130/187; RT571/141, 568/ 120, 569/135, v. G.) (STJ - REsp: 604719 PB 2003/0197080-4, Relator: Ministro FÉLIX FISCHER, Data de Julgamento: 22/08/2006).
O que poderia ensejar a atuação do Ministério Público em processo civil que tutela direitos, em regra, patrimoniais?
Sem dúvidas, algum interesse indisponível ou de parte, como dito, hipossuficiente, mais frágil.
Logo, acreditar que o Ministério Público possa intervir no feito para contrariar os interesses do curatelado é um contrassenso. Ninguém precisa de um "amigo da onça" assim.
Se o incapaz já é hipossuficiente, o Ministério Público posicionar-se totalmente contrário a ele gera um grave desequilíbrio processual.
Ao Parquet não se deve creditar a função de "segundo juiz", nem de fiscal da atividade jurisdicional.
Mas não se pode, também, obrigar que o membro do Ministério Público se manifeste de forma contrária às suas convicções (como chegou a afirmar Dinamarco), o que seria uma violação ao princípio da independência funcional.
Logo, a posição mais adequada seria calar-se. Afinal, "muito ajuda quem não atrapalha".
Não deixa de existir uma cognição exauriente para verificar a procedência ou a improcedência da pretensão do incapaz. Contudo, nem sempre a posição será externada.
É claro que o silêncio ministerial será uma espécie de silêncio eloquente: o Parquet deixou de se manifestar porque não concorda com o incapaz. Mas é melhor do que corroborar as afirmações da parte capaz, ou pior, reforçá-las, sobretudo quando se estará reforçando uma pretensão exclusivamente patrimonial.
Não se trata, propriamente, de uma vedação, e também não enseja qualquer tipo de nulidade, mas de uma regra de conduta, aquilo que se espera do Ministério Público em virtude de suas finalidades institucionais.
Ademais, caso o Parquet venha a se deparar com um caso em que a ação é procedente em parte, pode (e deve) o membro exarar sua manifestação na integralidade: concordando em parte, e refutando a parte improcedente.
O que não parece ponderado é afastar completamente a pretensão daquele cujos interesses deveriam ser protegidos pela instituição.
A questão, todavia, está longe de ser pacífica. Prevalece a ideia de que o Ministério Público tem autonomia para se manifestar em favor de qualquer das partes.
Há autores como Nelson Nery que afirmam que o Ministério Público poderia, até mesmo, recorrer contra o incapaz, algo que já foi refutado pela jurisprudência dos tribunais superiores.
BEDAQUE, José dos Santos. Justitia, São Paulo, 51 (148), out./dez. 1989.
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