"Não podemos exigir o cumprimento das normas". Essa frase, título do texto do senhor @Pedro Magalhães Ganem, era acompanhada da seguinte imagem.
O Estado embasado em um conceito de contrato social não deveria ter legitimidade para exigir o cumprimento das obrigações se não cumpridas as suas primeiramente.
Meninos de rua amontoados na saída de ar do respirador do metrô de São Paulo buscando aquecerem-se do frio.
"É querer demais que pessoas nessas condições respeitem nossas leis, nossos bens materiais e nossa integridade física." Completa a postagem que deu origem ao texto.
Frio e fome fazem parte da vida desses meninos abandonados por nós.
Não consigo não lembrar do menino morto pela política com um tiro na cabeça. Era um semelhante a esses. Era comum vê-lo com fome, sujo e descalço nas redondezas onde vivia, melhor, sobrevivia.
Logo me sucedeu a ideia de exceptio non adimpleti contractus. Ora, se vivemos com base em um contrato, o Contrato Social, segundo as teorias clássicas de Rousseau temos um relação de reciprocidade de direitos e deveres.
A maioria das teorias do Estado fundamenta a sua existência na situação de estado de natureza em que o homem não civilizado vivia. Sem o Estado, presumia-se a barbárie, a guerra constante entre os homens, prevalecendo sempre o mais forte diante do mais fraco. Não havia o respeito a vida, a liberdade e a propriedade alheia. A liberdade plena não dava limites aos homens. Seria o homem selvagem.
Assim surge o Estado. Uma ficção, ou um Leviatã, que estabelece uma relação entre o Príncipe e súditos, senhores e servos, que tornaram-se cidadãos futuramente. Não mais na representatividade divina do Rei, que validava os seus poderes diante dos súditos, agora com uma relação bilateral. Nesse sentido, todos os homens que nascem em um território, pelo simples fato de ali nascerem, estabelecem um contrato social com um soberano que lhes retiram de imediato a liberdade plena e exigem contribuições para "alimenta-lo" em troca de proteção. Esse monstro, como estamos aqui em uma relação contratual, tem contraprestações, sendo a principal garantir, no mínimo, a vida, a propriedade e, também, a dignidade de ser humano.
Essa máxima nos contratos que é a exceptio non adimpleti contractus, ou a exceção do contrato não cumprido. Permite que uma das partes descumpra suas obrigações devido ao inadimplemento do outra parte, "nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro", artigo 476, Código Civil.
Formalmente esse contrato possui o nome de Constituição.
Todos nascem com a carga do Estado sobre seus ombros com a existência de uma pressão constante para o cumprimento de suas "cláusulas" que estabelecem penas pelo seu inadimplemento. Mas não vivemos mais na época da irresponsabilidade administrativa, então, o Rei deve cumprir com seu dever, a sua parte do contrato. Não mais existimos para servir ao Príncipe, ele existe servir.
É longa a lista de obrigações das partes, atentar-me-ei somente a um dos fundamentos constante desse contrato, "a dignidade da pessoa humana". Além dele, há um objetivo. Objetivo é a razão de existir de uma ação humana, é o resultado desejável de um trabalho, é a materialização no mundo real, é o elemento subjetivo, o dolo. Nesse mesmo contrato temos como objetivo claro "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais", art. 3º, III.
Esse monstro chamado Estado é estruturado em direitos humanos e tem como uma das razões de existir a erradicação da pobreza e marginalização. Segundo o dicionário, erradicar é "retirar pela raiz; arrancar todo o conteúdo de". A obrigação dessa ficção jurídica, Estado, é não permitir que cenas como essa existam para que essas pessoas, partes do mesmo contrato social, não exerçam a exceção do contrato não cumprido, não respeitando as regras que limitam a liberdade plena, decorrente do estado de natureza, e não ofendam os direitos das outras pessoas. Pois, o inadimplente é uma invenção humana, não existe no mundo real, não pode ser ofendido em seus direitos, são os direitos de terceiros que são lesados quando as pessoas em Estado de Natureza exercem sua liberdade plena, inobservando o contrato social, pois o Leviatã não cumpriu sua parte do contrato com essas pessoas.
Só essa semana 5 pessoas morreram de frio em São Paulo!Descumprimento de cláusula constitucional. Estão à margem da sociedade, ou seja, marginalizados.
Diante de todo o exposto, podemos entender que o título do texto é juridicamente aceitável. "Não podemos exigir o cumprimento das normas" daqueles que tiveram desrespeitados os direitos presentes no contrato social, chamado Constituição. Assim o fazem por exceção do contrato não cumprido, na grande maioria das vezes.
A sociedade precisa construir um Estado que não descumpra seus objetivos. Que coloque em prática a sua razão de existir. Deixemos de "criar nossos monstros" para, posteriormente, sacrificá-los, como muito bem colocado pelo senhor @José Roberto.
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