A forma de arguição do vício de incompetência territorial tem, no Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), tratamento diverso daquele estipulado pelo antigo sistema processual doCódigo de Processo Civil de 1973 (CPC/73). Na lei revogada, a insurgência do réu contra o vício operava-se mediante interposição de uma exceção instrumental, cuja apresentação podia se dar antes ou concomitantemente à contestação, mas de forma autônoma.
Na sistemática da nova legislação processual, o réu deve arguir a incompetência relativa no bojo da contestação, assim como a incompetência absoluta, por força da regra constante no art. 337, II, do CPC/15.
Tal modificação do regime de repressão à incompetência territorial amolda-se à filosofia de desburocratização do feito, aglutinando alegações processuais numa única peça defensiva (arts. 337, XIII; e 293 do CPC/2015), além de evitar a instauração de incidentes processuais desnecessários[1]. Ocorre que, ainda que esse desiderato seja proveitoso à eficiência do processo, há de se verificar se a nova roupagem resiste ao teste de coerência oriundo do resultado das interpretações lógico-sistemática e teleológica.
Da contestação na atual sistemática doCódigo de Processo Civil/15. Regra da eventualidade.
Dentre as modalidades de resposta, a defesa do réu, por excelência, é a contestação.
A contestação é o ato processual por meio do qual o réu apresenta defesas de caráter processual, nas quais o intuito é o de atacar o procedimento ou, ainda, defesas de mérito, cujo objetivo é o de atacar direta ou indiretamente a versão dos fatos e fundamentos jurídicos descritos na petição inicial.
É extremamente importante que se atente, neste trabalho, para a regra da eventualidade, consagrada no art. 336 do CPC/15, que impõe ao réu o dever de apresentar na contestação todo o conteúdo de defesa, narrando todos os fatos e fundamentos existentes sobre a causa, sob pena de perder a oportunidade de alegar em momento posterior. Em poucas palavras, o momento oportuno para arguir toda a matéria de defesa é a contestação, sob pena de preclusão. Somente fatos supervenientes, objeções processuais e questões autorizadas por lei poderão ser arguidas em momento posterior. Todas as demais possíveis alegações devem ser arguidas no mesmo ato, qual seja, a contestação.
Da fase conciliatória potencialmente obrigatória do rito comum no novo Código de Processo Civil: audiência de conciliação/mediação.
No novo Código de Processo Civil, o réu, ao contrário do antigo regime legal, não mais é citado para apresentar defesa, mas, sim, para comparecer à audiência de conciliação ou mediação (arts. 238 e 334, caput, do CPC/15) [2]. Verifica-se, portanto, que o primeiro ato a ser praticado por ambas as partes no rito comum é, antes de qualquer outro ato, a audiência de conciliação.
Explica-se que a designação legal dessa audiência inaugural tem por finalidade implementar uma mentalidade de fomento à autocomposição, tão salutar para o processo. Vale frisar que a ideia de primazia à consensualização está incutida no novo Código, como norma fundamental expressa no art. 3º, §§ 2º e3º, do CPC/15.[3]
Segundo a nova lei, a audiência de conciliação é obrigatória diante do silêncio das partes. Isso impõe ao autor o dever de se manifestar pelo desinteresse na realização de audiência; e, ao réu, por sua vez, o dever de protocolizar uma petição de cancelamento nos 10 dias que antecedem a data designada para o ato conciliatório (art. 334, § 5º, do CPC/15). Caso autor e réu não apresentem, ambos, desinteresse em comparecer, a audiência será obrigatória e acarretará, inclusive, multa para a parte ausente (art. 334 § 4º e § 8º, do CPC/15).
Em regra, o prazo para apresentação de defesa somente se iniciará após o término da audiência de conciliação (art. 335,caput, do CPC/2015)[4]. E, somente a partir do protocolo da contestação se inicia a fase beligerante do processo, na qual restam evidentes os pontos controvertidos sobre os quais as partes demandantes não conseguiram acordar, necessitando, então, da decisão judicial para heterocomposição do litígio.
Nesse sentido, a contestação que esmiúça, em princípio, todo o conteúdo contra argumentativo à tese do autor, renova, obviamente, o ânimo litigioso das partes. Por essa razão, é prudente que a contestação somente seja anexada aos autos depois da exaustiva tentativa conciliatória entre os litigantes.
Distribuição livre da contestação.
A nova codificação processual traz uma regra para o réu que deseja arguir a incompetência relativa: “Havendo alegação de incompetência relativa ou absoluta, a contestação poderá ser protocolada no foro de domicílio do réu, fato que será imediatamente comunicado ao juiz da causa, preferencialmente por meio eletrônico” (art. 340, do CPC/15).
Distribuída a contestação, haverá a suspensão da audiência de conciliação e, por conseguinte, do próprio processo (art. 340,§ 3º e 313, VIII, do CPC/15), a fim de que o juízo originário, ou seja, aquele no qual foi distribuída a demanda, decida sobre sua própria competência.
Verifica-se que o CPC/15 permite a distribuição livre da contestação no juízo que entende devido (art. 340, § 1º, do CPC/15), antes da tentativa de conciliação. Nessa contestação, em observância à regra da eventualidade, arguirá não somente a incompetência territorial, mas, também, toda matéria de defesa.
Aí está o problema que ora se destaca. Quando a ação houver sido proposta em foro incompetente, o réu deve expor, pela regra da eventualidade, todo o teor defensivo da demanda, antes da realização da audiência de conciliação ou mediação. O integral teor defensivo do réu, decerto, acirra o ânimo de controvérsia entre as partes.
Das críticas às soluções para a suposta incongruência das novas regras de arguição da incompetência relativa do novo Código de Processo Civil.
De tudo o que foi ressaltado até agora, infere-se um possível questionamento de ordem prática: considerando que o primeiro ato a ser cumprido pelo réu é, em regra, a audiência de conciliação, de que modo ele poderá se insurgir contra a incompetência relativa, se não existe mais a modalidade da exceção instrumental, e a contestação, com toda a matéria de defesa, uma vez oferecida, tem potencialidade de acirrar os ânimos das partes e dificultar, quando não impossibilitar, a autocomposição?
A indagação acima mencionada merece consideração se o réu tem interesse na conciliação, mas quer se valer da faculdade prevista no art. 340 e arguir. Nesse caso, como compatibilizar os dois interesses do réu, quais sejam, conciliar e arguir a incompetência relativa? Como comparecer na audiência de conciliação, sem que esse comportamento gere a preclusão consumativa e a prorrogação da competência do juízo?
Aparentemente, o réu que pretende arguir o vício de competência relativa e, também, participar da tentativa de composição amigável não terá momento adequado para arguição do vício, antes da audiência conciliatória, sem que seja obrigado a apresentar a contestação e antecipar todo o teor defensivo, como visto acima. Em razão dessa situação hipotética, possivelmente corriqueira na prática, as novas regras do Código de Processo Civil podem gerar dúvidas sobre como proceder.
Diante dessa lacuna, é possível vislumbrar duas soluções plausíveis.
A primeira, mais intuitiva e de fácil visualização a partir do texto legal, compreende, como visto, a possibilidade de o réu protocolizar livremente a contestação no Juízo que entende correto e, atendendo à regra da eventualidade, alegar, no bojo da defesa, a incompetência relativa. Nessa oportunidade, ele poderá requerer a redesignação da audiência de conciliação e, enquanto isso, o processo principal ficará suspenso para análise do vício de incompetência (arts. 64, 340, § 1º, § 3º e § 4º, 336/337, II c/c 313, inciso VIII, do CPC/15).
Essa primeira solução sistemática das normas do NCPC/2015 atende à intenção legislativa de encerrar com a exceção instrumental da incompetência relativa e tratar todas as matérias de defesa numa mesma e única oportunidade, qual seja, a contestação. Perde o réu, contudo, a chance de comparecer à audiência de conciliação antes de apresentar sua peça de defesa, contrariando outro escopo da lei, o conciliatório, ao instituir essa audiência na fase inicial do procedimento.
Passa-se, então, ao destaque da segunda alternativa plausível para o aparente hiato legislativo. Paralelamente à regra da contestação livremente distribuída, vislumbra-se a possibilidade de o réu protocolizar no Juízo originário uma simples petição, na qual ele poderá arguir o vício de incompetência relativa e, também, informar sua vontade de participar da audiência inicial de conciliação.
Analogicamente, para essa segunda alternativa, seria aplicada a mens legis da regra prevista no artigo 334, § 5º, do CPC/15, que trata da petição para cancelamento da audiência de conciliação, quando não desejada pelo réu. Nesse caso, ao invés de o réu, por simples petição, requerer o cancelamento da audiência, manifestar-se-ia no sentido de afirmar sua vontade de conciliar e, ao mesmo tempo, registrar sua insurgência à competência escolhida pelo autor na petição inicial, ensejando, a partir de então, a suspensão do processo para resolver a arguição de incompetência relativa (art. 313,VIII, do CPC/15 e art. 340, § 3º, do CPC/15).
É relevante pensar que essa solução de aplicação analógica damens legis da regra contida no artigo 334, § 5º, do CPC/15, relativa ao mero peticionamento avulso da incompetência relativa, não deflagraria o termo inicial do prazo para a contestação (art. 335, I, do CPC/15), ensejando, excepcionalmente, resgate da arguição instrumental.
A solução alternativa de mero peticionamento atende, de fato, à mentalidade de primazia à consensualidade implantada pelo novo Código. Nesse sentido, se o réu apenas informa sobre eventual vício de incompetência relativa por mera petição, sem apresentar toda a tese da contestação antes da conciliação, o conteúdo integral da defesa, inacessível ao autor, viabiliza maior chance de composição do litígio.
Há de se reconhecer, no entanto, que se trata, sem dúvida, de alternativa lege ferenda, visto que não positivada no ordenamento legal. A solução é de lege ferenda, até porque eventualmente poder-se-ia entender, no regime atual, que a prática de atos em separado poderia gerar uma preclusão consumativa em relação a todos os demais argumentos de defesa da contestação.
A contestação antes do ato conciliatório, como sugerido na regra do artigo 340 § 5º do CPC/15, pode surtir o efeito indesejável de acirrar o ânimo beligerante entre as partes. Esse comportamento do réu, de distribuir a contestação antes da conciliação/mediação, portanto, iria de encontro à mentalidade de fomento à autocomposição consagrada no novo Código de Processo Civil.
Ademais, caso se mantenha a distribuição da contestação em detrimento do mero peticionamento de incompetência relativa, e, por conseguinte, as partes lograrem êxito na composição do litígio, a contestação torna-se peça processual inútil nos autos. Logo, se há maiores chances de efetivação de uma composição amigável entre os litigantes, sem apresentação do conteúdo integral da defesa, esta alternativa lege ferenda, qual seja, de peticionamento avulso, pode se tornar mais agradável aos olhos da praxe forense.
[1] Sobre as inovações nesse aspecto do então projeto de alteração da lei processual codificada, o ministro Luiz Fux, membro da Comissão de Juristas, assim dissertou: “Em primeiro lugar impunha-se reservar um só momento para a impugnação de questões preliminares e, em segundo, eliminar a formação de feitos incidentes que ensejam a interposição de inúmeros recursos, postergando a solução definitiva da lide. Estabeleceu-se, então, que todas as questões que compunham processos incidentes, como v. G., incompetência do juízo, impugnação ao valor da causa, falsidade documental, etc., passariam a integrar as preliminares de contestação. Por outro lado, conspirando em prol do mesmo benefício, eliminou-se a preclusão quanto à irresignação em relação às questões preliminares formais, todas a partir de então, decididas na sentença final, objeto de um só recurso” (FUX, Luiz. O novo processo civil. In: O novo processo civil brasileiro – direito em expectativa. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 16).
[2] Art. 238, CPC/15: “Citação é o ato pelo qual são convocados o réu, o executado ou o interessado para integrar a relação processual”; Art. 334, NCPC/2015: “Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência. § 1º O conciliador ou mediador, onde houver, atuará necessariamente na audiência de conciliação ou de mediação, observando o disposto neste Código, bem como as disposições da lei de organização judiciária. § 2º Poderá haver mais de uma sessão destinada à conciliação e à mediação, não podendo exceder a 2 (dois) meses da data de realização da primeira sessão, desde que necessárias à composição das partes. § 3º A intimação do autor para a audiência será feita na pessoa de seu advogado. § 4º A audiência não será realizada: I - se ambas as partes manifestarem, expressamente, desinteresse na composição consensual; II - quando não se admitir a autocomposição. § 5º O autor deverá indicar, na petição inicial, seu desinteresse na autocomposição, e o réu deverá fazê-lo, por petição, apresentada com 10 (dez) dias de antecedência, contados da data da audiência. § 6º Havendo litisconsórcio, o desinteresse na realização da audiência deve ser manifestado por todos os litisconsortes. § 7º A audiência de conciliação ou de mediação pode realizar-se por meio eletrônico, nos termos da lei. § 8º O não comparecimento injustificado do autor ou do réu à audiência de conciliação é considerado ato atentatório à dignidade da justiça e será sancionado com multa de até dois por cento da vantagem econômica pretendida ou do valor da causa, revertida em favor da União ou do Estado. § 9 º As partes devem estar acompanhadas por seus advogados ou defensores públicos. § 10º A parte poderá constituir representante, por meio de procuração específica, com poderes para negociar e transigir. § 11º A autocomposição obtida será reduzida a termo e homologada por sentença. § 12º A pauta das audiências de conciliação ou de mediação será organizada de modo a respeitar o intervalo mínimo de 20 (vinte) minutos entre o início de uma e o início da seguinte”.
[3] Art. 2º, parágrafos 2º e 3º, do CPC/15: “O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos; A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial”.
[4] Art. 335, caput, NCPC: “O réu poderá oferecer contestação, por petição, no prazo de 15 (quinze) dias, cujo termo inicial será a data: I - da audiência de conciliação ou de mediação, ou da última sessão de conciliação, quando qualquer parte não comparecer ou, comparecendo, não houver autocomposição; II - do protocolo do pedido de cancelamento da audiência de conciliação ou de mediação apresentado pelo réu, quando ocorrer a hipótese do art. 334, § 4o, inciso I; III - prevista no art. 231, de acordo com o modo como foi feita a citação, nos demais casos”.
Convidamos a curtir nossa página no Facebook, e nos seguir aqui no JusBrasil. Somos uma coluna semanal - publicada às segundas-feiras - escrita por mulheres, estudiosas do Direito Processual, coordenada por Beatriz Galindo, Carolina Uzeda eMarcela Kohlbach. Temos por objetivo fomentar debates na área de processo, a partir de reflexões propostas pelas mulheres do grupo.
*O texto reflete as opiniões da Autora, não tendo relação direta com a opinião das demais colunistas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário