Em conhecida passagem, Calmon de Passos predizia que, na vigência do CPCde 1973, o revel deixou de ser um ausente para se tornar um delinquente[1].
A crítica era pautada na alteração empreendida pelo legislador de 1973, eis que antes [2] não se sancionava propriamente o réu pela contumácia (revelia) [3], sendo que, a partir do CPC de 1973, a ausência do réu importava em diversas consequências [4].
Na vigência do CPC de 1973, considerava-se revel o réu que não apresentasse resposta, ao que se seguiam três consequências importantes:
Portanto, além dos argumentos de defesa não serem considerados (eis que sequer apresentados), presumia-se verdadeira a versão apresentada pelo autor aos fatos, pelo que, por assim dizer, a ausência de defesa desonerava o autor do ônus da prova (artigo 334, inciso IV, do CPC de 1973) [6].
Não fosse suficiente, o procedimento ordinário se encurtava, pela ocorrência da revelia, na medida em que a mesma conduzia ao julgamento antecipado da lide (artigo 330, inciso II, do CPC de 1973).
Esse rígido regramento processual, especificamente a presunção de veracidade dos fatos e a abreviação do procedimento, tornava pouco eficaz a intervenção do réu revel no feito, na medida em que o ordenamento oferecia pouca margem para a realização de sua defesa à destempo [7].
Mesmo que permitido seu ingresso a qualquer tempo, com a retomada de suas intimações processuais (artigo 322, parágrafo único, do CPC de 1973), a sumarização processual e cognitiva derivada da revelia lhe permitiam reduzido espaço de manobra.
A situação se apresentava com contornos de dramaticidade quando da resposta oferecida de forma intempestiva. Perceba-se, em tal caso, o réu pretendia propriamente participar do processo, mas por alguma vicissitude deixou de trazer oportunamente sua resposta. Diferentemente o réu que ficasse indiferente ao processo durante todo o seu trâmite. Porém, o Código não tratava diversamente quaisquer dos réus, seja aquela ausente na fase da resposta, seja aquele indiferente ao processo.
O novo Código, o Código de Processo Civil de 2015, inovou no tema, restringindo a aplicação da presunção da veracidade dos fatos e permitindo que o réu remedeie a falta de sua contestação, ou seja, abrandou as consequências da revelia no particular. Privilegiou o ingresso, ainda que tardio, do réu.
O Código atuou em duas frentes. Ampliou as situações em que a revelia não produz a integralidade dos seus efeitos, bem como afastou a abreviação do processo, decorrente do julgamento antecipado, na hipótese de comparecimento do réu.
Embora persista a revelia enquanto ausência da apresentação da contestação (artigo 344 do CPC de 2015), o Código estendeu tábua de salvação ao réu que intervenha oportunamente.
“Art . 349. Ao réu revel será lícita a produção de provas, contrapostas àsalegações do autor, desde que se façarepresentar nos autos a tempo depraticar os atos processuais indispensáveis a essa produção.Art . 355. O juiz julgará antecipadamente o pedido, proferindo sentençacom resolução de mérito, quando:(…).II – o réu for revel, ocorrer o efeito previsto no art . 344 e não houverrequerimento de prova, na forma do art . 349.”.
Pois bem, como se verifica dos dispositivos acima colacionados, a revelia, mesmo que incidentes seus efeitos, não implica em imediata abreviação do procedimento, com a realização do julgamento antecipado.
A participação, ainda que tardia do réu e desde que antes da fase decisória, com a apresentação do requerimento de prova, afastará a realização do julgamento antecipado, passando-se o feito à fase de instrução.
Ademais, as provas apresentadas pelo réu, em sua manifestação, poderão inclusive afastar os efeitos da revelia, na medida em que contraditem as alegações de fato apresentadas pelo autor (artigo 345, inciso IV, do CPC de 2015).
Como dito, para além das hipóteses tradicionais, o novo Código afastou a presunção de veracidade dos fatos quando: “asalegações de fato formuladaspelo autor forem inverossímeis ou estiverem em contradição com provaconstante dos autos.” (artigo 345, inciso IV, do CPC de 2015).
A nosso ver, com sua intervenção, o réu pode trazer provas pré-constituídas quanto aos fatos objeto da demanda, requerer a produção de provas, realizar o enfrentamento das razões alinhadas pelo autor — demonstrando, por exemplo, que tais razões não são verossímeis —, sem prejuízo finalmente de articular questões passíveis de serem reconhecidas de ofício (artigos 278, 337, § 5o, 342, II, e 485, § 3o, do CPC de 2015).
Deste modo, intervindo no feito, o réu revel tanto pode afastar a presunção de veracidade dos fatos, quanto evita o abreviamento do feito, com a solução antecipada do processo, razão porque se possibilita aquele efetivamente contribuir com a solução da lide.
Obviamente, a possibilidade de absorção tardia dos argumentos do réu pelo processo não se faz sempre sem qualquer preço. O atraso na apresentação de sua defesa pode por vezes não afastar a presunção de veracidade dos fatos (não se trouxe provas capaz de abalar as afirmações do autor, não se apresentando as mesmas como inverossímeis), mas lhe permite, pelo menos, a atuação processual no sentido de demonstrar a incorreção da pretensão do autor.
Teremos aí propriamente uma inversão automática do ônus da prova, em que o réu assume também o encargo de atuar contra a presunção de veracidade dos fatos alinhados pelo autor.
Pode não ter sido a melhor opção legislativa. Há muito se tem claro que a contumácia do réu não é um desafio à autoridade do juiz ou o reconhecimento tácito da procedência do pedido formulado pelo autor, tampouco remissão à justiça da futura decisão. Tanto é assim que a legislação processual não perquire a vontade do réu, mas apenas atribui consequências ao fato objetivo da ausência de resposta [8].
Suficientemente seria, pensamos, o prejuízo ao réu de não ter sua versão considerada no processo, pelo que prescindível conectar a presunção de veracidade dos fatos afirmados pelo autor.
De toda forma, não deixa de ser um avanço considerável do Código a mitigação dos efeitos da revelia, mormente pela abertura procedimental para a participação do réu, com a real possibilidade de produzir prova a seu favor. O revel que por lapso deixe de apresentar sua contestação tempestivamente, pode se agarrar em tal oportunidade processual, afastando os malefícios derivados de sua falta.
Em larga medida, ainda que o ordenamento processual persista em tratar o réu como um delinquente, pelo menos lhe assegura o devido processo legal.
Zulmar Duarte é Advogado. Professor. Pós-Graduado em Direito Civil e Processual Civil. Membro do IAB (Instituto dos Advogados Brasileiros) e do CEAPRO (Centro de Estudos Avançados de Processo). Autor.
[1] PASSOS, José Joaquim Calmon. Comentários ao código de processocivil: arts. 270 a 331. Rio de Janeiro: Forense, 1998. Vol. III, p. 335.
[2] O Código de Processo Civil de 1939, na esteira da tradição anterior, não estabelecia qualquer consequência processual negativa pela não apresentação da resposta, somente tornando desnecessária a realização de novas intimações ou notificações (artigo 34).
[3] A contumácia é fenômeno processual mais amplo, também ligado à ausência de atividade processual do autor. Basta lembrar da situação de abandono da causa (artigo 485, inciso III, do CPC de 2015), que, na hipótese limite, pode ocasionar a perda de acionabilidade (artigo 486, § 3o, do CPC de 2015). A falta da atuação processual das duas partes também é objeto de consideração pelo Código (artigo 485, inciso I, do CPC de 2015).
[4] “O Brasil é um continente, segundo velho, mas expressivo, lugar–comum. Possui Estados maiores que países comoÁustria, Portugal e a Alemanha. Estados dolorosamente pobres e atrasados, onde analfabetos emarginalizadosvivem em lugares precariamente servidos de meios decomunicação e nos quais muitas vezes nem chegou a ser muitovisto umprofissional do direito. Lugares onde as partes, sem que isso constituararidade, nem mesmo sabem o realsignificado de uma citação e, recebendo–a das mãos do oficial (quando a recebem), procuram na cidade o coronel ouocompadre letrado, para que as oriente a respeito. E tanto o oficial quanto ocitado viajam léguas ‘na alpercata’, queainda é meio de comunicação domundo esquecido deste Brasil que não ‘cheira’ a mar, nem a café, nem apetróleo. Etodos são brasileiros, apesar de tudo. E porque o são, aliando aessa qualificação cívica a qualificação de sereshumanos, esses Josés de CoisaNenhuma deveriam ser considerados como um dado relevante na soluçãodeproblemas dessa ordem. Os cultos, os bem–providos, ou bem–nascidos eos bem–situados financeira egeograficamente, esses dificilmente são revéis. Mas os outros, que se situam fora da cerca, ou dentro do cercado, essesdificilmente não são revéis de fato ou de direito. E eles foramesquecidos.” (PASSOS, op. Cit., p. 341).
[6] De fato, a jurisprudência amainava o rigor dos efeitos da revelia, permitindo a superação da presunção da veracidade dos fatos: “AGRAVOREGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO COMINATÓRIA – PLANO DESAÚDE – REALIZAÇÃO DE CIRURGIA – PERDA DE OBJETO DAAÇÃO – JULGAMENTO DE EXTINÇÃO – ART . 267, VI, DO CPC – DECISÃOMONOCRÁTICA QUE NEGOU PROVIMENTO AO AGRAVO. IRRESIGNAÇÃO DO AGRAVANTE. 1. Ao examinar a presunção deveracidade decorrente da revelia, da qual trata o art . 319, do CPC, o juizdeve atentar–separa os elementos probatórios presentes nos autos, formando livremente sua convicção, para, só então, decidir pelaprocedênciaou improcedência do pedido, revelando–se, portanto, a força relativa doprincípio da revelia. Precedentes: REsp 434866/CE, Relator Ministro BarrosMonteiro, DJ de 18/11/2007; REsp 1128646/SP, RelatoraMinistra NancyAndrighi, DJe de 14/09/2011. 2. Incidência na hipótese da Súmula 83/STJ: “Não se conhece do recursoespecial pela divergência, quando a orientação dotribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida.” 3. Agravoregimental desprovido.” (STJ, AgRg no Ag 1251160/RS, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 26/08/2014, DJe 05/09/2014).
[7] Não faltou quem defendesse inclusive a retirada de eventual defesa apresentada pelo réu, com base no artigo 195 do CPC de 1973. Corretamente a jurisprudência também relativizou tal rigorismo, entendimento que com maior razão deve ser mantido na vigência do Código que não reeditou o dispositivo em sua parte final: “PROCESSUAL CIVIL – AGRAVOREGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO – RESPONSABILIDADECIVIL – DEMANDA INDENIZATÓRIA POR DANOS MORAIS E MATERIAIS– VÍCIOS DE CONSTRUÇÃO – QUESTÃOPROCESSUAL – CONTESTAÇÃOINTEMPESTIVA – DEVOLUÇÃO DOS AUTOS ALÉM DO PRAZO LEGAL – PEDIDO DEDESENTRANHAMENTO – INVIABILIDADE – PRINCÍPIO DADOCUMENTAÇÃO DOS ATOS PROCESSUAIS. I – Aprevisão legal (CPC, artigo 195) de desentranhamento de peças e documentos apresentadosjuntamente com os autos– devolvidos em cartório além do prazo legal – nãoimpede permaneçam nos autos, conquanto sem efeito jurídico, emobservância ao princípio da documentação dos atos processuais. II – Odesentranhamento da contestaçãointempestiva não constitui um dos efeitosda revelia. O réu revel pode intervir no processo a qualquer tempo, demodoque a peça intempestiva pode permanecer nos autos, eventualmente, alertando o Juízo sobre matéria de ordempública, a qual pode ser alegada aqualquer tempo e grau de jurisdição. Agravo regimental improvido.” (STJ, AgRg no Ag 1074506/RS, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/02/2009, DJe 03/03/2009).
[8] CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil: as relações processuais; a relação processual ordinária de cognição. Com anotações de Enrico Tullio Liebman. Traduzido por Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1998. Vol. 3, p. 176.
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