30 de junho de 2016

DANO MORAL POR ILÍCITO PRATICADO ANTES DA CONCEPÇÃO

Há alguns dias uma singular decisão veio da Inglaterra. Um homem nascido com graves deficiências em razão de sua mãe ter sido estuprada pelo próprio pai, obteve compensação por danos morais contra o avô. Em um precedente histórico, o Upper Tribunal entendeu que a vítima - agora um homem de 28 anos - é legitimado a obter a reparação. O jovem é epilético, possui graves dificuldades de aprendizado e sério comprometimento visual e auditivo. Segundo a defesa, o demandante não se enquadrava no conceito legal de pessoa, pois se o crime não fosse cometido contra a sua mãe, ele não existiria. Ademais, um ilícito causado antes da concepção, cujas consequências se revelam após o nascimento, não pode ser tratado como lesão a uma pessoa viva. Contudo, para os magistrados, não há norma preceituando que a vítima seja uma pessoa ao tempo do crime. O decisivo é que as desordens genéticas sejam consequências diretamente atribuídas ao ato incestuoso.

Importante salientar que esse caso não se assemelha com o acontecido há alguns anos em França - seja no famoso affair Perruche, como em outras situações em que médicos foram processados por detectarem deficiências físicas ou mentais em fetos, impedindo que mães optassem pelo aborto. Lá se discutiu sobre a perda de uma chance de mães evitarem vidas com intenso sofrimento (uma causalidade duvidosa, que poderia suscitar o estímulo a praticas eugênicas se as demandas fossem vitoriosas). Na Inglaterra, em contrapartida, o ponto fulcral foi a responsabilidade civil por ato ilícito no qual a vítima não era um nascituro, ou sequer um pré-embrião, porém um concepturo, ou seja, aquele que ainda está para ser concebido, uma “expectativa do devir”, encontrando-se no campo das incertezas. O concepturo não habita o campo da existência e quanto a ele só há referência na sucessão testamentária (art. 1799ICC), na condição de filho ainda não concebido de pessoa indicada pelo testador. A famosa “prole eventual”, que pode vir a existir no futuro.
Seguindo a teoria concepcionista, não obstante desprovido de capacidade jurídica e da titularidade de situações patrimoniais, o nascituro detém incondicional personificação, havendo precedentes jurisprudenciais sobre a sua legitimidade para exigir a compensação de danos extrapatrimoniais decorrentes de ofensa a direitos da personalidade. Ilustrativamente, o nascituro cujo pai é morto em acidente de trabalho ou atingido em sua integridade física por qualquer ofensa a sua mãe gestante, poderá postular a reparação de danos, considerando-se a ofensa aos seus atributos existenciais.
Em sentido diverso, o concepturo não é pessoa, nem se enquadra na ideia intermediária de uma potencialidade de vida a que se defere especial proteção (o embrião excedentário crioconservado). Vimos que na sucessão testamentária, o concepturo surge como uma construção legal, o que explica que a sua tutela jurídica seja meramente patrimonial e pontual. Mas qual será a justificativa jurídica para rompermos essa barreira legislativa, a ponto de respaldarmos a pretensão ao dano moral em face do concepturo? Penso que com base em um direito eventual à vida e à proteção integral. Enquanto o nascimento com vida é a condição suspensiva que determinará o recebimento da herança, a concepção intrauterina será o evento futuro e certo que demarcará o momento em que surge a pessoa e a respectiva tutela a sua personalidade, mesmo que o ilícito tenha sido praticado em momento anterior à nidação do embrião no útero materno e que os danos só sejam efetivamente constatados após o nascimento.
Podemos mesmo elaborar um raciocínio às avessas, com forte pragmatismo. O defunto não titulariza direitos da personalidade, mas os seus atributos existenciais jamais fenecem como coisa de ninguém, pois transcendem o momento da morte. A “memória do morto” é passível de proteção bifronte– inibitória e reparatória -, por parte de seus familiares, em nome próprio, por ilícitos praticados contra a honra, imagem e nome da pessoa já falecida. Pois bem: esse raciocínio também se aplica a aurora da vida. O concepturo é pura hipótese de ser, ainda não é sujeito de direitos, mas o ilícito que repercute imediatamente sobre ele, transcende o estágio anterior à fecundação, alcançando a sua vida e existência.
A carga argumentativa do precedente poderá servir como fundamentação para que filhos processem genitores por comportamentos de risco associados a infecções como o HIV, ou ao uso excessivo de álcool - v. G. Síndrome Alcoólica Fetal - cujos efeitos danosos serão identificados posteriormente, ainda na fase de gravidez. Indo além, poderá ainda compreender danos decorrentes de transmissão de moléstias genéticas previamente conhecidas pelos pais. Não se trata de responsabilizá-los por gerarem filhos deficientes, porém, pela prática de atos ilícitos, entendendo-se que uma função preventiva da responsabilidade civil requer que o dever fundamental do cuidado seja elastecido para justificar a tutela do concepturo.

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